Além da indignação e do horror provocado pelo ataque do grupo terrorista Hamas contra Israel, uma outra discussão veio à tona: o uso das criptomoedas para o financiamento de atividades criminosas. Nos últimos dias, a imprensa internacional publicou declarações do governo israelense de que teria identificado carteiras digitais que seriam ligadas a membros do Hamas e bloqueado seus recursos em criptoativos.

Em torno desses eventos, o paradoxo do ecossistema cripto: o (falso) anonimato por trás de identidades alfanuméricas e a rastreabilidade de todas as transações realizadas em uma blockchain, a rede de dados criptografados, imutáveis e públicos. E, nesse cenário, a crescente institucionalização desse mercado, com o aumento da regulamentação oficial e a consequente adoção de políticas e ferramentas de prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo (PLD/FT).

Em entrevista ao portal especializado CoinDesk, Yaya Fanusie, ex-funcionário da CIA (o serviço de inteligência americano), que acompanha o financiamento do terrorismo por meio de criptos desde 2016, atualmente diretor de política de prevenção à lavagem de dinheiro (PLD) no Crypto Council for Innovation, afirmou que “criptos estão longe de ser um bilhete premiado para quem quer arrecadar recursos secretamente”.

“Na verdade, pode ser exatamente o oposto”, ressaltou Fanusie. “A natureza pública das blockchains e dos endereços de carteiras digitais expõe o financiamento do terrorismo ao escrutínio.” Para ele, o doador a um grupo criminoso “é burro o suficiente” para achar que não pode ser descoberto por um sistema de segurança.

Veículos de imprensa ao redor do mundo especularam quanto o Hamas teria arrecadado em criptos para financiar seus ataques a Israel. O Wall Street Journal publicou que seriam US$ 40 milhões utilizados na ofensiva que matou milhares de israelenses.

A agência de notícias alemã Deutsche Welle publicou que, entre agosto de 2021 e junho de 2023, o Hamas teria recebido US$ 41 milhões em criptomoedas, citando dados da empresa de análise de criptofinanças BitOK, sediada em Tel Aviv. Entre as criptos transacionadas estariam bitcoin, a maior em valor de mercado, atualmente em US$ 28 mil, tether, a maior “cripto de dólar”, e até dogecoin (que é uma memecoin, isto é, foi criada por diversão).

As campanhas de arrecadação do Hamas foram públicas: começaram e terminaram no Telegram. Em 2019, membros do grupo pediram doações em bitcoin e publicaram o endereço da carteira digital. Em abril de 2023, a ação foi inversa: solicitaram a suspensão do envio de recursos, justamente porque as transações estavam sendo rastreadas e os colaboradores, identificados.

Felipe Medeiros, analista de criptomoedas e sócio da Quantzed Criptos, casa de análise e empresa de tecnologia e educação financeira para investidores, explica que as exchanges possuem o cadastro de seus clientes, “então é muito fácil de bloquear” recursos de carteiras digitais.

De acordo com o Financial Times, em reportagem publicada nesta terça-feira (17), mais de 100 contas teriam sido congeladas na Binance, a maior plataforma de negociação de criptomoedas do mundo, a pedido do governo israelense. Informações de outras 200 contas teriam sido solicitadas.

Em posicionamento enviado ao Valor Investe, a exchange afirmou que, “como sempre, a Binance segue as regras de sanções reconhecidas internacionalmente, bloqueando o pequeno número de contas vinculadas a fundos ilícitos”.

Ainda segundo o comunicado oficial, “nos últimos três anos, a Binance atendeu mais de 103 mil solicitações de aplicação da lei com um tempo de resposta médio de três dias, que é mais rápido do que a maioria das instituições financeiras tradicionais”. “Só entre janeiro e setembro de 2023, a equipe de Inteligência e Investigações da Binance respondeu a mais de 40 mil pedidos de informações de autoridades”, conclui a nota.

Na segunda-feira, a Tether, empresa emissora da cripto de mesmo nome, informou que congelou 32 endereços, contendo US$ 873 mil em criptos, “que foram considerados vinculados a atividades ilícitas em Israel e na Ucrânia”. “Tether tem trabalhado com a NBCTF [órgão do governo em Israel para combater o terrorismo e a guerra financiados por criptomoedas]”, destaca o comunicado.

Ainda na nota, a emissora ressalta que “até o momento, a Tether ajudou 31 agências em todo o mundo com investigações em 19 jurisdições, congelando um total de US$ 835 milhões em ativos principalmente associados a roubo (hacks de blockchain e exchanges), com uma pequena parcela a outros crimes”.

Por não ser uma exchange, surgiu a dúvida de como uma emissora de criptomoeda teria mecanismos para identificar e congelar carteiras digitais.

Medeiros explica que os emissores de criptos pareadas a ativos reais, as chamadas stablecoins, como tether (pareada ao dólar), “têm acesso ao rastro que esse dinheiro deixa em blockchain, que pode ser acompanhado desde a movimentação da carteira até alguns envios para exchanges, saques e envios para outras carteiras”.

Ele explica ainda que essas carteiras não são bloqueadas especificamente, mas “marcadas”. “Quando a Tether disse que bloqueou uma carteira, na verdade, ela marcou essa carteira, pois não tem o poder de bloquear dentro da blockchain”, ressalta Medeiros. “Essa carteira entra em uma ‘blacklist’ e todas as plataformas centralizadas e descentralizadas não interagem com ela, passando a ter muita dificuldade ou até impossibilidade completa de se desfazer das stablecoins e converter em moeda fiduciária”, aponta.

“A criptomoeda é uma ferramenta poderosa, mas não é uma ferramenta para o crime”, afirmou Paolo Ardoino, presidente da Tether, no comunicado. “Ao contrário da crença popular, as transações com criptomoedas não são anônimas; eles são os ativos mais rastreáveis existentes. Cada transação é registrada na blockchain, tornando viável para qualquer pessoa rastrear movimentos de fundos. Consequentemente, criminosos tolos o suficiente para empregar criptomoedas para atividades ilegais serão inevitavelmente identificados.”

O amadurecimento do mercado cripto, com uma maior adoção institucional e regulamentações oficiais sendo implementadas, tem aumentando a adoção de políticas e ferramentas de prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo (PLD/FT).

O Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF), criado no âmbito da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), estabeleceu 40 recomendações que seus países-membros devem implementar para desenvolver e promover políticas de combate a atividades ilícitas por meio de transações financeiras e comerciais locais e transfronteiriças.

Periodicamente, o Gafi realiza avaliação dos países membros acerca da implementação dessas recomendações e atribui uma “nota” para a saúde e a integridade do sistema financeiro relacionado a esses crimes, elaborando uma lista de países menos seguros que são monitorados e outra com as “jurisdições de alto risco”. A avaliação deste ano, manteve Irã, Coreia do Norte e Mianmar nessa última categoria.

No ano passado, o Gafi atualizou suas recomendações, incluindo os prestadores de serviços de ativos virtuais, os chamados VASPs, na sigla em inglês. Entre as ferramentas do mundo tradicional que foram levadas para o mercado cripto está a chamada abordagem baseada no risco (ABR), uma metodologia de análise individual de perfil e comportamento que permite identificar transações suspeitas. Entre os processos dessa metodologia está o KYC, Conheça Seu Cliente, que identifica e traça o potencial de risco de pessoas físicas e jurídicas.

“O pilar fundamental de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo é conhecer o cliente e as contrapartes de uma transação financeira, no jargão: know your client ou KYC”, ressalta Mariana Tumbiolo, sócia do Madruga BTW Advogados e especialista em PLD. “Instituições reguladas são obrigadas a checar diariamente listas restritivas, de forma a prevenir que sejam realizadas operações com pessoas suspeitas de terrorismo ou seu financiamento.”

Mariana aponta que “a descentralização e a rapidez das operações com criptoativos, assim como a não identificação dos reais detentores das carteiras virtuais, podem facilitar o mau uso do sistema para financiamento do terrorismo”.

“As corretoras de criptoativos [exchanges] são o principal ponto de contato entre as moedas tradicionais e as moedas virtuais”, afirma a especialista. “Como tal, elas devem desempenhar um papel importantíssimo de verdadeiras ‘guardiãs’ do sistema financeiro, buscando evitar que as transações sejam utilizadas para fins ilícitos.”

No Brasil, pontua Mariana, o marco legal dos criptoativos (Lei 14.478/22) determina que as VASPs sejam incluídas no rol de sujeitos obrigados às regras de prevenção à lavagem de dinheiro. “Nesse contexto, de extrema importância é a publicação de regulação pelo Banco Central, que detalhe essas obrigações, diminuindo uma preocupante lacuna no sistema.”

Para a advogada Fernanda Tórtima, sócia do Tórtima, Galvão & Maranhão Advogados, o fato de o Banco Central “ainda não ter editado as normas específicas, relativas ao funcionamento e aos deveres a serem observados por essas plataformas, dificulta, senão inviabiliza, ao menos no Brasil, a fiscalização eficiente de suas operações e eventuais sancionamentos em caso de infrações”.

Segundo Fernanda, há normas gerais editadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que, “em tese, se aplicariam a qualquer instituição que tenha como atividade a intermediação e aplicação de recursos de terceiros. Mas, por falta de regulamentação específica, as operações com criptomoedas só passam a ter efetivos instrumentos de PLD e KYC quando os valores delas decorrentes entram no sistema financeiro tradicional”.