Toda a obra de Jonathan Perel gira em torno das marcas indeléveis deixadas pela última ditadura cívico-militar na Argentina. E seu novo filme Camouflage não é exceção. Na semana do Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça, estreia no Teatro Leopoldo Lugones de San Martín o filme deste realizador nascido precisamente em 1976, ano do golpe que deu início a um dos períodos mais sangrentos da história nacional. Teatro (Avenida Corrientes 1530, décimo andar), acompanhado de uma retrospectiva de sua obra que inclui outros três longas, um média-metragem e três curtas.

Camuflaje é baseado no romance Campo de Mayo, publicado por Félix Bruzzone em 2019, e tem como protagonista o próprio escritor, que logo após se mudar para o bairro Teniente Ibáñez descobriu que sua mãe – Marcela Bruzzone Moretti, militante do Partido Revolucionário de los Trabajadores (PRT) – foi detido em um centro de extermínio na área conhecida como “El Campito”. A longa-metragem de Perel desloca-se deliberadamente num terreno híbrido, cruzando algumas passagens documentais com outras ficcionais. E já foi exibido com boa repercussão no Festival de Berlim, na França, no México. nos Estados Unidos e em Buenos Aires.

“Inicialmente pensei em fazer uma ficção – conta Perel, cineasta, pesquisador e professor portenho -, mas o projeto ficou paralisado por um tempo e Félix acabou fazendo uma peça teatral a partir do mesmo texto que depois publicou como romance. E voltou a contactar-me depois de um episódio que viveu quando internou a sua avó num lar de idosos que funciona na propriedade Campo de Mayo. No final conseguimos lançar este projeto que ele define como uma prequela, o que aconteceu antes o livro saiu.

No filme -que será exibido na sala Lugones neste sábado 25 e domingo 26 às 21h e na terça-feira 28, quarta-feira 29, quinta-feira 30 e sexta-feira 31 às 18h-, Bruzzone corre como qualquer outro corredor na vasta área do Campo de Mayo, a maior guarnição militar da Argentina, que ocupa cerca de cinco mil hectares. Ele também conversa com diferentes personagens com quem se depara naquele lugar do subúrbio de Buenos Aires: um arqueólogo, um treinador de crossfit, o dono de uma microempresa de entrega de alimentos: “Estávamos interessados ​​em ter uma pluralidade de vozes porque essa polifonia mostra que não existe uma verdade única sobre o Campo de Mayo”, explica Perel. E acrescenta: “Félix teve muita participação na busca pelos diferentes personagens que aparecem no filme, que não são os mesmos do livro. E esteve sempre ao serviço do filme que eu queria fazer. Ele foi realmente muito generoso. E seu personagem é importante porque ele é o fio condutor, aquele que unifica o tom do filme. Alguém que acima de tudo sabe ouvir”.

—O lugar onde boa parte do filme foi rodado é incrível. E é cheio de surpresas…

—Campo de Mayo tem uma superfície que é um terço de toda a Capital Federal, é gigantesca… E tem limites difusos que permitem circular por certas áreas sem pedir permissão a ninguém. Podem entrar rapazes das escolas primárias e secundárias da zona, existe um picadeiro e ainda uma sala para casamentos ou festas de aniversário. Eu sabia porque em outro dos meus filmes, 17 monumentos, eu tinha filmado lá. Mas eu não tinha ido tão fundo quanto desta vez. Aliás, agora fui contatado por pessoas da Rede Federal de Arquivos da Memória (ReFAM), que está investigando locais onde se supõe que possam estar enterrados corpos de desaparecidos. Fazendo este filme acabamos por ver lugares que nem as organizações de direitos humanos detectavam porque os militares faziam de tudo para os esconder.

— Não é de todo um documentário para usar. Já tinha aquela ideia de entrada?

—Me interessa especialmente o fato de que os filmes que faço constroem um espaço que permite ao espectador trabalhar na construção do sentido. Estou interessado no espectador ativo. O sentido dos meus filmes não é didático porque não acredito que o cinema possa ou deva transmitir uma mensagem tão transparente que vá de um lugar para outro. Vejo mais como uma ferramenta de reflexão para que o espectador saia da sala mobilizado. Nos filmes mais convencionais dedicados ao tema da ditadura militar, o espectador tem um ponto de vista privilegiado: todas as informações são transmitidas de forma ordenada, com significado inequívoco. Ele sai do cinema sabendo que o filme fez o trabalho de memória para ele. E busco o contrário: que cada um faça o seu trabalho ao sair do cinema. Mas parece que o tema dos direitos humanos gera um respeito reverente, então os recursos que valem para o cinema contemporâneo abordar quase qualquer assunto, nesses casos não seriam adequados. Não concordo nada com isso, claro.

—Que outro bom exemplo de abordagem desse tema você resgataria no cinema argentino?

—O filme que me marcou para sempre é Los rubios, de Albertina Carri. É um filme que diz bem alto para você “Olha tudo que pode ser feito com o cinema!”. E sinto que Camouflage é uma espécie de reverso de Los rubios. Assim como Albertina em 2013 precisava de uma atriz para interpretá-la, dez anos depois pedi a Félix Bruzzone que se colocasse no lugar do protagonista da história que imaginou para seu romance. Achei necessário sentir sua transpiração, seu esforço. Ele estava convencido de que tudo o que inventava para um personagem fictício de uma novela que entra no Campo de Mayo sem permissão tinha que ser feito de verdade. Naquele encontro com as pegadas de sua mãe, foi muito importante para mim que ele mesmo colocasse o corpo. É por isso que as tomadas dele correndo são longas, não são tomadas de dez ou quinze segundos que podem ser manipuladas para um propósito específico no processo de edição.

— O que essa carreira obstinada do protagonista simboliza para você?

—Félix não quis responder a esta pergunta porque a metáfora do romance está aí sintetizada com precisão. Mas vou dizer, me parece fundamental enfatizar que o filme é circular: começa e termina com ele correndo, e isso tem a ver com o trabalho do luto, que com certeza não vai ter conclusão, que não vai chegar em qualquer lugar. O corpo da mãe está desaparecido, não se sabe onde está, não consta em nenhuma lista, os militares nunca explicaram o que fizeram com ele, não há sepultura para trazer flores… Esses desaparecidos que não têm sepultura: são fantasmas que visitam com insistência porque sem o necessário trabalho de luto é impossível que não reapareçam.

A retrospectiva em andamento

Na retrospectiva dos Lugones, intitulada Integral Jonathan Perel, o curta Los murales (2011), que registra vestígios nas paredes dos centros de detenção clandestinos El Olimpo e Automotores Orletti, o média-metragem El predio (2010), que enfoca num outro espaço sinistro, o da Escola de Mecânica da Marinha, hoje transformada em museu. Também os longas-metragens Responsabilidade Corporativa (2020), apoiados no primeiro relatório feito pelo Estado argentino que sistematiza vinte e cinco casos onde há evidências da participação de diferentes empresas na repressão ilegal iniciada em 1976, e Toponímia (2015) , que narra a história de uma série de povoados tucumanos fundados especialmente pelo governo militar em meados dos anos 70 no âmbito do Operativo Independência, projeto que buscava eliminar os guerrilheiros (principalmente o ERP) que atuavam naquela área de o país. Perel argumenta: “São todos filmes com diferentes pontos de vista em torno de um mesmo tema, a memória, os processos de memória devem permanecer em permanente discussão, sempre abertos, sempre em construção. Quando se acredita que já se conseguiu contar a história e surge o monumento e o museu, fecha-se o sentido, vira-se a página. Sou contra porque o terreno da memória é pantanoso, está em constante redefinição”.

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